Madame Bovary - Cap. 9: IX Pág. 75 / 382

Quando a Sr. Bovary erguia os olhos, via-o sempre ali, como uma sentinela de serviço, com o barrete grego sobre a orelha e a jaqueta de linho cru.

À tarde, uma vez ou outra, aparecia uma cabeça de homem por fora da janela da sala, rosto bronzeado, suíças negras, sorrindo lentamente com um sorriso rasgado e bondoso, mostrando os dentes brancos. Logo começava uma valsa e, por cima do realejo, num salão em miniatura, dançarinos da altura de um dedo, mulheres de turbante cor-de-rosa, tiroleses de jaqueta, macaquinhos de casaca preta, senhores de calção curto, giravam sem parar entre cadeiras, canapés e consolas, reflectindo as suas imagens nos bocados de espelho unidos uns aos outros por fios de papel dourado. O homem accionava a sua manivela, olhando à esquerda e à direita e na direcção das janelas. De vez em quando, enquanto lançava à valeta um longo jacto de saliva escura, descansava sobre o joelho o seu instrumento, cuja correia dura lhe magoava o ombro; e, ora plangente e arrastada, ora alegre e apressada, a música saía da caixa zumbindo através de uma cortina de tafetá cor-de-rosa, sob uma grelha de latão em arabescos. Eram músicas que se tocavam noutros lugares nos teatros, que se cantavam nos salões, que se dançavam à noite sob os lustres iluminados, ecos do mundo que daquela maneira chegavam até aos ouvidos de Emma. Passavam-lhe pela imaginação sarabandas sem fim e, qual bailadeira sobre as flores de um tapete, o seu espírito saltava com as notas, balançando-se de sonho em sonho; de tristeza em tristeza. Depois de receber a esmola no boné, tapava o seu realejo com um cobertor velho de lã azul, punha-o às costas e afastava-se caminhando pesadamente. Emma ficava a vê-lo ir-se embora.

Mas era principalmente às horas das refeições que já não podia mais, naquela pequena sala do rés-do-chão, com o fogão a deitar fumo, a porta a ranger, as paredes a ressumar, as lajes húmidas; parecia-lhe que no seu prato era servida toda a amargura da sua existência e, com o fumegar do ozido, subiam-lhe do fundo da alma outros vapores de tédio.





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