1984 - Cap. 13: Capítulo XIII Pág. 155 / 309

.. sete vezes. Winston abandonara o hábito de beber gin a toda hora. Parecia não precisar mais dele. Engordara, a variz ulcerada sarara, deixando apenas uma nódoa parda na pele, acima do tornozelo; não sofria mais de acessos de tosse de madrugada. O processo da vida cessara de ser intolerável, e não sentia mais ímpetos de fazer caretas para a teletela nem de gritar nomes feios. Agora que possuíam um esconderijo seguro, quase um lar, já não lhes parecia tão mau encontrar-se frequentemente, e apenas por algumas horas. O que importava era a existência do quarto sobre a loja do antiquário. Saber que estava lá, inviolado, era quase o mesmo que estar nele. O quarto era um mundo, uma redoma do passado, onde sobreviviam animais extintos. O antiquário, pensava Winston, era outro animal extinto. Geralmente se detinha uns minutos para conversar com ele, antes de subir. O velho parecia sair raramente, ou nunca, e tampouco parecia ter fregueses. Levava uma existência fantasmal entre a lojinha escura e uma cozinha ainda menor onde preparava as refeições e que continha, entre outras coisas, um gramofone incrivelmente antigo, com uma enorme trompa. Parecia contente de poder conversar. Perambulando no meio do seu estoque de frioleiras, com o nariz comprido, os óculos espessos, e os ombros arcados metidos num paletó de veludo, tinha sempre um ar vago mais de colecionador de que de mercador. Com desbotado entusiasmo acariciava uma velharia insignificante - uma tampa de porcelana para garrafa, um pedaço pintado de caixa de rapé, um medalhão de pechisbeque contendo um anel de cabelo de alguma criança morta - sem nunca pedir a Winston que comprasse nada, mas apenas que admirasse. Conversar com ele era como ouvir uma caixa de música já gasta.




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