1984 - Cap. 13: Capítulo XIII Pág. 156 / 309

Tirara dos cantos da memória outros fragmentos de cançonetas esquecidas. Havia uma que falava de vinte e quatro gralhas, outra a respeito duma vaca de chifre partido, e ainda outra sobre a morte do pobre pintarroxo.

- Pensei que o senhor se poderia interessar - dizia, com uma risadinha de desculpas, sempre que apresentava novo fragmento.

Mas nunca podia lembrar mais do que alguns versos de cada canção. Winston e Júlia sabiam - de modo que nunca baniam do espírito - que não podia durar muito o que estava acontecendo. Havia ocasiões em que a morte vindoura parecia tão palpável quanto a cama que ocupavam, e então se agarravam com uma espécie de desesperada sensualidade, como uma alma danada se agarra ao último bocado de prazer quando faltam apenas cinco minutos para soar a hora. Mas havia também ocasiões em que tinham a ilusão não apenas de segurança como de permanência. Tinham a impressão de que, enquanto estivessem naquele quarto, nenhum mal lhes poderia advir. Chegar até lá era difícil e perigoso, mas o quarto era um santuário. Era como se Winston olhasse dentro do peso de papel, com sensação de ser possível penetrar aquele mundo de vidro, e que, uma vez dentro dele, o tempo se imobilizaria. Com frequência se entregavam a sonhos escapistas conscientes. A sorte haveria de ajudá-los, indefinidamente, e continuariam a aventura até o fim da vida natural. Ou Katherine morreria e, com auxílio de manobras sutis, Winston e Júlia conseguiriam casar. Ou então se suicidariam juntos. Ou desapareceriam, alterando as fisionomias de modo que ninguém os reconhecesse, aprenderiam a falar com sotaque proletário, arranjariam emprego numa fábrica e viveriam até o fim numa ruela obscura.





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