Madame Bovary - Cap. 22: XIV Pág. 239 / 382

Desse grande amor embalsamado saía uma certa exalação, que, atravessando tudo, perfumava de ternura a atmosfera imaculada onde queria viver. Quando se punha de joelhos sobre o genuflexório gótico, dirigia ao Senhor as mesmas palavras de suavidade que antes murmurara ao seu amante, durante as efusões de adultério. Era para atrair a fé; mas nenhuma delícia descia dos Céus e ela erguia-se dali com os membros fatigados e um vago sentimento de um imenso logro. Esta procura de Deus, pensava ela, não deixava de ser um mérito a mais; e, no orgulho da sua devoção, Emma comparava-se às grandes damas de outrora, com cuja glória sonhara examinando uma pintura de Valliêre e que, arrastando com tanta majestade as caudas cobertas de rendas dos seus longos vestidos, se retiravam para a solidão a fim de derramarem aos pés de Cristo todas as lágrimas dum coração ferido pela existência.

Entregou-se então a excessos de caridade. Cosia roupas para os pobres; mandava lenha às mulheres de parto; e Charles, ao entrar um dia em casa, encontrou na cozinha três vadios abancados a comer sopa. Mandou regressar a pequenita, que o marido, durante a doença dela, mandara para casa da ama. Quis-lhe ensinar a ler; por mais que Berthe chorasse, ela já não se irritava. Era uma resignação decidida, uma indulgência universal. A sua linguagem era, a propósito de tudo, cheia de expressões ideais. Dizia à criança:

- Já te passou a cólica, meu anjo?

A mãe do Dr. Bovary não encontrava nada de que a censurar, salvo talvez aquela mania de fazer camisolas de malha para os orfãozinhos, em vez de remendar os seus esfregões. Mas, farta de querelas domésticas, a boa senhora gostava de estar naquela casa tranquila e deixou-se mesmo lá ficar até depois da Páscoa, para evitar os sarcasmos do velho Bovary, que não deixava de mandar preparar, todas as Sextas-Feiras Santas, uma linguiça.





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