Madame Bovary - Cap. 32: IX Pág. 360 / 382

- Admiro o cristianismo. Em primeiro lugar porque aboliu a escravatura, introduziu no mundo uma moral...

- Não se trata disso! Todos os textos...

- Oh!, oh!, quanto aos textos, é só abrir a história; sabe-se que foram falsificados pelos Jesuítas.

Charles entrou e, aproximando-se do leito, afastou lentamente as cortinas.

Emma tinha a cabeça inclinada sobre o ombro direito. O canto da boca, que ficara parcialmente aberta, formava um buraco escuro na parte inferior do rosto; os dois polegares continuavam recurvados para as palmas das mãos; tinha uma espécie de poeira branca espalhada pelas pestanas e os olhos começavam a desaparecer numa palidez viscosa que se assemelhava a um tecido muito fino que houvesse sido trabalhado por aranhas. O lençol fazia uma grande cova desde os seios até aos joelhos, elevando-se depois nas pontas dos dedos dos pés; e parecia a Charles que massas infinitas, um peso enorme pesava sobre ela.

O relógio da igreja badalou doze horas. Ouvia-se o cavo murmúrio do rio que corria no meio das trevas, perto do terraço. O Padre Bournisien, de vez em quando, assoava-se ruidosamente e Homais fazia arranhar a pena sobre o papel.

- Vamos lá, amigo - disse ele -, é melhor retirar-se, este espectáculo aflige-o!

Assim que Charles saiu, recomeçaram as discussões entre o farmacêutico e o cura.

- Leia Voltaire! - dizia um. - Leia Holbach, leia a Enciclopédia!

- Leia as Cartas de Alguns Judeus Portugueses! - dizia o outro. - Leia a Razão do Cristianismo, de Nicolau, antigo magistrado!

Ambos se excitavam, ficavam rubros, falavam ao mesmo tempo sem se escutar um ao outro; Bournisien estava escandalizado com tamanho atrevimento; Homais admirava-se de tamanha estupidez; e não faltava muito para começarem a ofender-se mutuamente, quando Charles, de súbito, reapareceu.





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