Cândido, Martin e Pangloss discutiam frequentemente sobre moral e metafísica. Viam muitas vezes passar sob as janelas da casa barcos carregados de efêndis, paxás e cádis que eram exilados para Lemnos, Mitilene e Erzerum; outros cádis, outros paxás e efêndis tomavam o lugar deles e eram, por seu turno, expulsos. Podiam também contemplar as cabeças bem empalhadas que iam apresentar à Sublime Porta.
Estes espectáculos faziam redobrar as discussões; quando não se discutia, o aborrecimento era tão grande que a velha ousou dizer -lhes um dia.
- Gostava de saber se será pior ser violada cem vezes por piratas negros, ter uma nádega cortada, sofrer as chibatadas dos Búlgaros, ser açoitado e enforcado num auto-de-fé e depois dissecado, remar nas galés, experimentar enfim todas as misérias por que temos passado ou estar aqui sem fazer nada?
- Eis um grande problema - disse Cândido.
Este discurso fez nascer novas reflexões; Martin, sobretudo, concluiu que o homem nascera para viver nas convulsões da inquietação ou na letargia do aborrecimento. Cândido não concordava com tal opinião, mas não propunha fosse o que fosse em contrário. Pangloss confessava que sempre havia sofrido horrivelmente, mas, tendo sustentado uma vez que tudo corria às mil maravilhas, havia de sustentá-lo sempre, embora não o acreditasse.
Uma coisa acabou por firmar Martin nos seus detestáveis princípios, fazer hesitar Cândido mais que nunca e embaraçar Pangloss. É que viram um dia aparecer na quinta, na mais extrema miséria, Paquette e o Irmão Giroflée. Tinham consumido num instante as três mil piastras, tinham-se separado e tornado a juntar e novamente zangado, acabando por ser presos. Conseguiram fugir e o Irmão Giroflée acabou finalmente por se fazer turco, continuando Paquette a sua profissão, que já nada rendia.