A filha de Fávila, cujo profundo e enérgico sentir mal poderia compreender quem só a houvera visto no momento em que tímida recuava diante do perigo mais aparente que real das margens do Sália, proferiu estas palavras com um tom de entusiasmo, com uma expressão afectuosa tão íntima, que o guerreiro caiu a seus pés. A ventura embargava-lhe a voz. O que lhe tumultuava no coração não tem nome na linguagem dos homens: era mais que a loucura. Com um movimento delirante, apertou contra os lábios a mão da donzela. Queimavam! Depois de largo silêncio, ele murmurou enfim:
— Minha!... Quem há na terra que possa roubar-ma?... Anos de tormentos, fostes como um dia de bonança e deleite! Imagem que absorveste esta existência inteira; anjo que me fazes surgir do meu inferno para o teu céu, tu foste que me salvaste a mim! Oh, como é bom ser feliz!... Tinha-me já esquecido!... Como o Sol deve agora ser belo, serena a aragem da tarde, meigo o murmurar do ribeiro, viçosa a verdura do prado!... Tinha-me também esquecido! Tens razão, Hermengarda. Quero viver: o viver é delicioso; delicioso, porque será contigo... ao pé de ti... a adorar-te sempre, sem me lembrar do que existe, além de ti, no universo. Vem, minha amante, minha esposa!, vem jurar que me pertences, perante o altar e aos pés do sacerdote...
A esta palavra fatal, um grito semelhante ao de homem ferido de morte rompeu agudo e rápido do seio do cavaleiro. A mão de Eurico abandonou a mão de Hermengarda, e os seus olhos brilharam com fulgor infernal. Recuou, afastando de si a irmã de Pelágio, sobressaltada por aquele gesto subitamente demudado, por aquele olhar ardente e vago. Ela não podia compreender a causa de semelhante mudança... Com o braço esquerdo estendido, o guerreiro parecia querer arredá-la de si, enquanto com a mão confrangida apertava a fronte, como se buscasse esmagar um pensamento atroz que lhe surgia lá dentro.