- Foi um caso excecional. Não foi apenas um assassínio. Percebes que o passado, a partir de ontem, foi abolido? Se sobrevive nalguma parte, é em alguns objetos sólidos, sem palavras ligadas a ele, como naquele pedaço de vidro. Já não sabemos quase nada sobre a Revolução e os anos anteriores à Revolução. Todos os registros foram destruídos ou falsificados, todo livro reescrito, todo quadro repintado, toda estátua, rua e edifício rebatizado, toda data alterada. E o processo continua, dia a dia, minuto a minuto. A história parou. Nada existe, exceto um presente sem-fim no qual o Partido tem sempre razão. Eu sei, naturalmente, que o passado é falsificado, mas jamais me seria possível prová-lo, mesmo sendo eu o autor da falsificação. Depois de feito o serviço, não sobram provas. A única prova está dentro da minha cabeça, e não sei com certeza se outros seres humanos partilham minhas recordações. Apenas naquele caso, na minha vida toda, possuí prova real, concreta, depois do acontecimento... anos depois.
- E de que adiantou?
- Não adiantou nada, porque a deitei fora uns minutos depois. Porém, se a mesma coisa acontecesse hoje, eu guardaria a prova.
- Ora, eu não! Estou disposta a correr riscos, mas só por coisas que valham a pena, não por causa de pedacinhos de papel. Que poderias fazer com o recorte, se o guardasses?
- Pouca coisa, talvez. Mas era prova. Poderia ter semeado algumas dúvidas, aqui e ali, supondo que ousasse mostrá-lo a alguém. Não creio que possamos alterar coisa alguma nesta vida. Mas posso imaginar pequenos nódulos de resistência brotando aqui e ali... pequenos grupos de gente que se reúne, e vão crescendo, e deixando algumas notas, de modo que a geração seguinte possa continuar a obra.