Madame Bovary - Cap. 2: II Pág. 13 / 382

Parara de chover; o dia começava a despontar, e, sobre os ramos despidos das macieiras, os pássaros mantinham-se imóveis, eriçando as suas pequenas plumas ao vento frio da manhã. A rasa planície estendia-se a perder de vista e os pequenos bosques em volta das fazendas faziam, a intervalos distanciados, manchas de um violeta-escuro sobre a grande super eficiente cinzenta, que se confundia, no horizonte, com o tom pardo do céu. Charles, de tempos a tempos, abria os olhos; depois cansando-se-lhe o espírito e voltando o sono, logo entrava numa espécie de torpor em que, confundindo-se as sensações recentes com as recordações passadas, tinha a impressão de viver uma dupla personalidade: ser ainda estudante e já homem casado, estar deitado na cama como ainda há momentos, e atravessar ao mesmo tempo uma enfermaria de operados, como anteriormente. O cheiro quente das cataplasmas confundia-se-lhe na cabeça com o cheiro do orvalho; ouvia correr as argolas nos varões de ferro das camas do hospital e, simultaneamente, o ressonar da sua mulher... Ao passar por Vassonville, avistou, à beira de um valado, um rapazinho sentado na relva.

- O senhor é que é o médico? - perguntou o pequeno.

E, ouvindo a resposta de Charles, apanhou logo os tamancos e largou

a correr, descalço, na frente dele.

Enquanto ia a caminho, o oficial de saúde compreendeu, pelas informações do guia, que o Tio Rouault devia ser um lavrador dos mais abastados. Havia partido a perna na véspera, à noite, quando regressava de uma festa de Reis em casa de um vizinho. A mulher falecera havia dois anos. Vivia só com a sua menina, que o ajudava no governo da casa.

Os sulcos da estrada iam ficando mais profundos. Aproximavam-se dos Bertaux. O miúdo, atravessando então uma abertura na vedação, desapareceu, voltando depois do fundo de um pátio para abrir a cancela.





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