O Retrato de Ricardina - Cap. 1: CAPÍTULO I - O ABADE DE ESPINHO Pág. 3 / 178

A desonra que recebemos há quinze anos é coisa em que ninguém já fala. Tudo esquece. Foi uma desgraça; todas as famílias têm destas nódoas. Já agora, sejamos filósofos como toda a gente.

O abade ouviu a mensagem, e disse:

- Agora, sim; mas é preciso que mas venham pedir, para depois se negociarem as dispensas.

Era muito! O apurar tanto o aviltamento dos futuros maridos das suas filhas denuncia mau carácter, índole retrincada, que seria a desonra de um faquir, quanto mais de um abade cristão, e, sobre cristão, católico, e, sobre católico, pai! A baixeza dos Pimenteis não se explica bastantemente com a filosofia. Causas mais vulgares os determinaram a entrar prazenteiros e submissos na casa que os seus pais e tios tinham, dezassete anos antes, espingardeado. Digamos primeiro a mais poética: Eugénia e Ricardina eram belas. Agora a outra que não tinha vislumbres de poesia: os rendimentos da casa dos Pimenteis não bastavam à quitação anual dos juros a vários santos usurários que exercitavam a onzena mediante os seus procuradores chamados “confrarias”.

Em nome de S. Martinho e das almas santas e da Senhora do Rosário, eram eles citados a miúdo para pagarem os débitos à corte celeste. Se o feito corresse na comarca dos credores, seria de esperar que os santos cordatos fossem à mão dos litigantes, admoestando-os a usarem generosamente com os devedores; mas na comarca de Viseu as sentenças saíam todas contra os Pimenteis, e já sucedia penhorarem-lhes os frutos pendentes em nome das almas ou do Senhor S. Joaquim.

Ainda depois de beatificados por méritos de martírio, há santos que continuam a ser neste mundo flagelados no seu crédito. S. Martinho, por exemplo, dava aos nus metade da sua capa; agora acontece que a confraria que lhe zela os cofres cá em baixo, dá a logro o dinheiro dele, e tira a capa a quem lhe não paga o juro.





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