Madame Bovary - Cap. 22: XIV Pág. 243 / 382

- Porque, no passado, eles concorriam abertamente com as cerimônias de culto. Sim, faziam-se representações, representavam-se no meio do coro umas espécies de farsas chamadas mistérios, nas quais muitas vezes se ofendiam as leis da decência.

O eclesiástico contentou-se em soltar um gemido e o farmacêutico prosseguia:

- É como na Bíblia; há..., bem sabe..., certos pormenores... maliciosos, coisas... verdadeiramente atrevidas!

E, notando um gesto de irritação da parte do Padre Bournisien, continuou:

- Ah!, concorde que não é um livro para se pôr nas mãos de um jovem, e eu ficaria bastante contrariado se Athalie...

- Mas são os protestantes, e não nós - exclamou o outro impaciente -, que recomendam a Bíblia.

- Seja como for! - disse Homais. -Admira-me muito que, nos nossos dias, num século de luzes, se obstinem ainda a proibir um passatempo intelectual que é inofensivo, moralizante e até higiénico algumas vezes, não é, doutor?

- Sem dúvida - respondeu o médico indolentemente, talvez porque, tendo as mesmas ideias, não quisesse ofender ninguém, ou talvez por não ter ideias nenhumas.

A conversa parecia terminada, quando o farmacêutico achou conveniente descarregar um último golpe.

- Conheci padres que se vestiam com trajo secular para ir ver dançar as bailarinas.

- Ora adeus! - exclamou o cura.

- Digo-lhe que conheci!

E, separando as sílabas da sua frase, Homais repetiu:

- Co... nhe... ci.

- Pois então faziam muito mal - disse Bournisien, resignado a ouvir tudo.

- É verdade! E ainda fazem muitas outras! - exclamou o boticário.

- Senhor!... - prosseguiu o eclesiástico, com um olhar tão feroz que intimidou o farmacêutico.

- Eu só queria dizer - replicou o outro em tom menos brutal- que a tolerância é o meio mais seguro de atrair as almas à religião.





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