Madame Bovary - Cap. 28: V Pág. 304 / 382

- Um homem de ciência não pode embaraçar-se com pormenores de vida prática.

Charles sentiu-se aliviado por aquela reflexão aduladora, que conferia à sua fraqueza as lisonjeiras aparências duma preocupação superior.

Que expansão de alegria, na quinta-feira seguinte, no hotel, com Léon, no quarto! Ela riu, chorou, cantou, dançou, mandou trazer sorvetes, quis fumar cigarros, pareceu-lhe extravagante, mas adorável, soberba.

Léon não compreendia que reacção no interior daquela alma a impelia ainda mais a precipitar-se sobre os prazeres da vida. Ela tornava-se irritável, gulosa e voluptuosa; passeava com ele pelas ruas, de cabeça erguida, sem medo de se comprometer, como ela dizia. Por vezes, no entanto, estremecia quando lhe ocorria a ideia de poder tornar a encontrar Rodolphe; porque lhe parecia que, embora se tivessem separado para sempre, ainda não se tinha libertado completamente da sua dependência.

Uma noite não regressou a Yonville. Charles estava como doido e a pequenina Berthe, não querendo deitar-se sem a mama, soluçava convulsivamente. Justin fora andar para a estrada ao acaso. E até Homais deixara a farmácia.

Enfim, às onze horas, não podendo mais conter-se, Charles aparelhou o carro, saltou-lhe para cima, chicoteou a besta e chegou pelas duas da madrugada à Cruz Vermelha. Ninguém. Lembrou-se que talvez o escriturário a tivesse visto; mas onde morava ele? Felizmente lembrou-se da morada do patrão. Correu para lá.

O dia começava a alvorecer. Distinguiu uns letreiros por cima duma porta; bateu. Alguém, sem abrir, lhe gritou a informação pedida, acrescentando uma data de insultos contra os indivíduos que incomodavam as pessoas durante a noite.

A casa onde morava o escriturário não tinha campainha, nem aldraba, nem porteiro.





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