Madame Bovary - Cap. 31: VIII Pág. 350 / 382

Canivet, mantendo sempre o seu aprumo, começava apesar de tudo a sentir-se perturbado.

- Oh!, diabo!... No entanto... ela já está purgada, e, desde que a causa cesse...

- Deve cessar o efeito - atalhou Homais. - É evidente.

- Mas salvem-na! - exclamava Bovary.

Por isso, sem escutar o farmacêutico, que arriscava ainda a hipótese de «ser talvez um paroxismo salutar», Canivet preparava-se para lhe administrar teriaga, quando se ouviu o estalar dum chicote; logo a seguir todas as vidraças estremeciam e uma carruagem de posta, puxada a toda a força por três cavalos enlameados até às orelhas, surdiu repentinamente da esquina do mercado. Era o Prof. Lariviere.

A aparição de um deus não teria causado tanta emoção. Bovary levantou as mãos, Canivet largou logo tudo e Homaistirou o boné da cabeça muito antes de o doutor entrar.

Lariviêre pertencia à grande escola cirúrgica saída de Bichat, a essa geração, já desaparecida, de médicos filósofos que, dedicando à sua arte um amor fanático, a exerciam com exaltação e sagacidade! No seu hospital, tudo tremia quando ele se irava e os alunos tinham-lhe tal veneração que, logo que se estabeleciam, se esforçavam por imitá-lo o mais possível; de modo que se podia ver neles, pelas vilas dos arredores, a sua longa capa de merino e o amplo fato preto, que, desabotoado, lhe encobria um pouco as mãos carnudas, umas mãos belas que nunca calçavam luvas, como para estarem mais prontas a mergulhar nos mistérios. Desdenhando as condecorações, os títulos e as academias, hospitaleiro, liberal, paternal com os pobres, praticando a virtude sem crer nela, teria quase passado por um santo, se a agudeza do seu espírito o não tornasse temido como um demónio. O seu olhar, mais cortante do que os bisturis, penetrava directamente na alma e desarticulava todas as mentiras, atravessando alegações e pudores.





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