Sim, um doido. E nunca foi feliz. Veio um dia a catástrofe e incendiou-lhe a casa: mais tarde enganaram-no, mentiram-lhe. E não faltou a doença a escalavrá-lo brocando-lhe a cara e a tísica a romper-lhe o peito com tosse, nem a miséria a deprimi-lo. É por isso que ele, ao sacar das casas o caixão dos mortos como quem o arranca do peito dos que ficam, decerto ri por dentro, há-de rir consolado.
Apedrejam-no os garotos ao vê-lo passar para os enterros, fogem dele os vizinhos e só uma mulher, tão maltratada pelo destino como ele, fala ao gato-pingado.
Foi sempre assim: raquítica, triste e feia. A vida para ela tem sido sustentar primeiro a mulher que a tirou do asilo, depois o homem com quem casou, e que logo a deixou sozinha. Só com o gato-pingado conversa às vezes. Diz sempre as mesmas coisas e com que mesquinhas palavras! Mal sabe exprimir-se. Falam os dois como podem comunicar entre si as pedras, os seres que o acaso rola juntos no mesmo vagalhão da vida. Nem se queixam – e de que se hão-de queixar? Deus os sustenta na sua mão de pai.
– A gente é pobre – diz, ele.
– A gente é pobre – diz ela. – E às vezes passa fome.
– Passa.
– Quando a minha mãezinha era viva, eu rapava fome. Era preciso dar-lhe o sustento e eu mal o ganhava para mim. Ate que acabou de penar os seus trabalhos.
Tudo se acaba um dia.
– Pior do que isso é não ter ninguém. É pior do que a fome.
– É o pior de tudo.
– Que se há-de fazer?
– Sabe vossemecê? olhe que eu às vezes ponho-me a cismar porque é que a gente sofre...
E o vento ulula. No coração do inverno o enxurro leva as lágrimas que ensoparam a terra e a lufada arrasta os gemidos para um destino ignorado. Rola as lágrimas dos pobres, nalguma nuvem perdida, e gemidos, ais, palavras leva-as o vento consigo.