Cândido ouviu estes conceitos com toda a atenção e formou do expositor uma ideia elevada. E como a marquesa tivera o cuidado de o sentar ao lado dela, tomou a liberdade de lhe falar ao ouvido e de lhe perguntar quem era aquele homem tão esclarecido.
- É um sábio - disse a dama - que o abade traz cá algumas vezes, mas que não joga. Tem grandes conhecimentos de tragédias e de livros e é autor de uma tragédia pateada e de um livro que nunca saiu da livraria, exceptuando-se um exemplar que ele me dedicou.
- Um grande homem! - exclamou Cândido. - Outro Pangloss!
E, virando-se para ele; disse-lhe:
- Senhor, certamente pensais que tudo quanto se passa no mundo físico e no mundo moral está bem e não podia ser melhor nem de outra maneira?
- Eu, senhor - respondeu-lhe o sábio -, não penso nada de semelhante. Pelo contrário, penso que entre nós tudo vai às avessas, que ninguém sabe já qual é o seu lugar, nem a sua ocupação, nem o que faz, ou o que deve fazer, e que, excepto à mesa em que tudo está satisfeito ou em que todos parecem de acordo. o resto do tempo se passa em querelas impertinentes: jansenistas contra molinistas, membros do Parlamento contra membros da Igreja, homens de letras contra homens de letras, cortesãos contra cortesãos, financeiros contra o povo, mulheres contra maridos, famílias contra famílias, enfim, uma guerra eterna.
Cândido retorquiu-lhe:
- Já vi pior. Mas um sábio que teve a infelicidade de ter sido enforcado ensinou-me que tudo se passa às mil maravilhas. Tais acidentes são apenas sombras de um belo quadro.
- O vosso enforcado - disse Martin - troçava do mundo sem dúvida, pois tais sombras são manchas horríveis.
- Mas são manchas que os homens fazem - disse Cândido - e que não podem deixar de fazer.