É preciso ainda observar que, pelo menos até hoje, no nosso continente, tal doença é-nos tão privativa como a controvérsia. Os Turcos, os Indianos, os Persas, os Chineses, os Siameses, os Japoneses, não a conhecem ainda; mas há uma razão suficiente para que venham a conhecê-la dentro de alguns séculos. Entretanto, ela vai fazendo progressos maravilhosos entre nós, sobretudo nos grandes exércitos constituídos por honestos estipendiários, bem-educados, que decidem dos destinos dos Estados. Pode assegurar-se que, quando trinta mil homens combatem em linha de batalha contra um exército composto por igual número de homens, há cerca de vinte mil sifilíticos de cada lado.
-Tudo isso é admirável- disse Cândido -, mas é preciso que vos cureis.
- Mas como? - perguntou Pangloss. - Não tenho um vintém, meu amigo, e em parte alguma deste globo encontramos onde fazer uma sangria ou uma lavagem sem pagar, ou sem que haja alguém que o faça por nós.
Este último discurso decidiu Cândido. Foi lançar-se aos pés do seu caritativo anabaptista e fez-lhe uma pintura tão comovente do estado a que o seu amigo estava reduzido que o bom homem não hesitou em acolher em sua casa o Dr. Pangloss e mandá-lo curar à sua custa. Pangloss curou-se, perdendo somente um olho e uma das orelhas. Como escrevia bem e conhecia perfeitamente a aritmética, o anabaptista Tiago fez dele o seu guarda-livros. Passados dois meses, como era obrigado a ir a Lisboa por causa dos seus negócios, levou consigo os dois filósofos. Pangloss explicou-lhe como tudo estava organizado da melhor maneira possível, mas Tiago não era da sua opinião.
- Os homens devem certamente ter corrompido a natureza, porque, não tendo nascido lobos, se transformaram em lobos.