Mal tinha recobrado os sentidos, quando vos vi completamente nu. Foi então o cúmulo do horror, da consternação, da dor, do desespero. Dir-vos-ei, sem mentir, que a vossa pele é ainda mais branca que a do capitão búlgaro e que tendes uma carnação ainda mais perfeita que a dele. Esta vista agravou os sentimentos que me dominavam, que me devoravam. Queria gritar, queria dizer: 'Parai, bárbaros!', mas faltou-me a voz. Além disso, os meus gritos teriam sido inúteis. Enquanto vos açoitavam, dizia para comigo: ‘Como é possível que o amável Cândido e o sábio Pangloss se encontrem em Lisboa, um para receber um cento de açoites e o outro para ser enforcado, por ordem de Monsenhor, o inquisidor, de quem sou a bem-amada? Pangloss enganava-me, pois, cruelmente quando me dizia que tudo ocorre no mundo pelo melhor.’
«Agitada, de cabeça perdida, ora fora de mim, ora prestes a morrer de fraqueza, enchia-me a cabeça a lembrança da carnificina de meu pai, de minha mãe e de meu irmão, a insolência do vilão soldado búlgaro, a navalhada que me deu, a minha servidão, o meu trabalho de cozinheira em casa do meu capitão búlgaro, o abominável D. Issacar e o vilão do inquisidor, o enforcamento do Dr. Pangloss, o miserere em cantochão enquanto vos açoitavam e, sobretudo, o beijo que me destes atrás do biombo, no dia em que vos vira pela última vez. Dava graças a Deus que vos trazia de novo até mim, depois de tantos sofrimentos. Recomendei à minha velha que cuidasse de vós e vos trouxesse a esta casa logo que fosse possível. Ela cumpriu cuidadosamente as minhas ordens. E eu saboreei o prazer inexprimível de vos tornar a ver, de vos ouvir e conversar convosco. Mas deveis estar com uma fome devoradora.