- Quem era - perguntou Cândido - aquele grande idiota que me disse tanto mal da peça que me fez chorar e cujos actores tanto me agradaram?
- É um pelintra - respondeu o abade - que ganha a vida a dizer mal de todas as peças e de todos os livros. Inveja os que triunfam como os eunucos invejam os homens viris. É uma das serpentes da literatura que se alimentam de veneno e de imundície, a que chamam foliculários.
- E que entendeis vós por foliculário? - disse Cândido.
- Ora - respondeu o abade -, é um homem que escreve nas folhas. Um Fréron (Publicista Francês, fundador de uma revista literária).
Assim conversavam Cândido; Martin e o abade, na escadaria enquanto as pessoas saíam do teatro.
- Embora esteja ansioso por voltar a ver a menina - disse Cândido -, gostaria de cear com a menina Clairon, pois pareceu-me admirável.
O abade não era pessoa para se aproximar da menina Clairon, pois só se dava com pessoas de categoria, e ela era apenas uma actriz. Por isso, disse a Cândido:
- Ela está comprometida para esta noite, mas poderei levar-vos a casa de uma senhora muito distinta e onde começareis a conhecer Paris como se aqui vivêsseis há quatro anos.
Cândido, que era naturalmente curioso, deixou-se conduzir a casa da dama, ao fundo do bairro de Saint-Honoré. Jogava-se o faraó (jogo de cartas). Viam-se doze tristes jogadores, cada um com um baralho de cartas na mão, registo anguloso dos seus infortúnios. Reinava um silêncio profundo, via-se a palidez na fronte dos pontos e a inquietação na do banqueiro. A dona da casa, sentada junto deste, observava com olhos de lince todas as paradas, todas as jogadas e manigâncias dos jogadores, avisando-os com uma atenção severa, mas polida, e nunca se zangava, com medo de perder os fregueses.