XXIXO que me importa é o tipo psicológico do Salvador. Esse tipo talvez seja descrito nos evangelhos, apesar de que em uma forma mutilada e saturada de caracteres estrangeiros — isto é, a despeito dos Evangelhos; assim como a figura de Francisco de Assis se apresenta em suas lendas a despeito de suas lendas. A questão não é a veracidade das evidências sobre seus feitos, seus ditos ou sobre como foi sua morte; a questão é se seu tipo ainda pode ser compreendido, se foi conservado. — Todas as tentativas de que tenho conhecimento de se ler a história da “alma” nos Evangelhos revelam para mim apenas uma lamentável leviandade psicológica. O Senhor Renan, esse arrivista in psychologicis (especialista em assuntos psicológicos), contribuiu às duas noções mais inadequadas concernentes à explicação do tipo de Jesus: a noção de gênio e a de herói (“heros”). Mas se existe alguma coisa essencialmente antievangélica, certamente é a noção de herói. O que os Evangelhos tornam instintivo é precisamente o oposto de todo o esforço heroico, de todo o gosto pelo conflito: a incapacidade de resistência converte-se aqui em algo moral: (“não resistas ao mal” — a mais profunda sentença dos Evangelhos, talvez a verdadeira chave para eles) a saber, na bem-aventurança da paz, da bondade, na incapacidade para a inimizade. Qual o significado da “boa-nova”? — Que verdadeira vida, a vida eterna foi encontrada — não foi meramente prometida, está aqui, está em você; é a vida que se encontra no amor livre de todos os retraimentos e exclusões, livre de todas as distâncias. Todos são filhos Deus, Jesus não reivindica nada apenas para si; como filhos de Deus, todos os homens são iguais... Imagine fazer de Jesus um herói!