XXXIX— Farei uma pequena regressão para explicar a autêntica história do cristianismo. — A própria palavra “cristianismo” é um mal-entendido — no fundo só existiu um cristão, e ele morreu na cruz. O “Evangelho” morreu na cruz. O que, desse momento em diante, chamou-se de “Evangelho” era exatamente o oposto do que ele viveu: “más novas”, um Dysangelium (nova, notícia). É um erro elevado à estupidez ver na “fé”, e particularmente na fé na salvação através de Cristo, o sinal distintivo do cristão: apenas a prática cristã, a vida vivida por aquele que morreu na cruz, é cristã... Hoje tal vida ainda é possível, e para certos homens até necessária: o cristianismo primitivo, genuíno, continuará sendo possível em quaisquer épocas... Não fé, mas atos; acima de tudo, um evitar atos, um modo diferente de ser... Os estados de consciência, uma fé qualquer, por exemplo, a aceitação de alguma coisa como verdade — como todo psicólogo sabe, o valor dessas coisas é perfeitamente indiferente e de quinta ordem se comparado ao dos instintos: estritamente falando, todo o conceito de causalidade intelectual é falso. Reduzir o ato ser cristão, o estado de cristianismo, a uma aceitação da verdade, a um mero fenômeno de consciência, equivale a formular uma negação do cristianismo. De fato, não existem cristãos. O “cristão” — aquele que por dois mil anos passou-se por cristão — é simplesmente uma autoilusão psicológica. Examinado de perto, parece que, apesar de toda sua “fé”, foi apenas governado por seus instintos — e que instintos! — Em todas as épocas — por exemplo, no caso de Lutero — “fé” nunca foi mais que uma capa, um pretexto, uma cortina por detrás da qual os instintos faziam seu jogo — uma engenhosa cegueira à dominação de certos instintos...