1984 - Cap. 21: Capítulo XXI Pág. 289 / 309

Era perfeitamente possível que antes de ser morto todo o drama da prisão e do interrogatório fosse representado de novo. A única coisa certa era que a morte nunca ocorria no momento esperado. A tradição - a tradição tácita: sabia-se, sem nunca se ter ouvido falar dela - era ser atirado pelas costas: sempre na nuca, sem aviso, quando o preso ia pelo corredor, de uma cela a outra.

Um dia - mas "um dia" não era a expressão correta, com toda a probabilidade era no meio da noite - uma vez mergulhou num sonho estranho, feliz. Ia andando pelo corredor, à espera da bala. Sabia que viria dali a um momento. Tudo estava resolvido, esclarecido, reconciliado. Não havia mais dúvidas, nem discussões, nem dor, nem medo. Sentia o corpo sadio e forte. Andava com facilidade, com uma alegria de movimentos, com a sensação de caminhar ao sol. Não estava mais nos estreitos corredores brancos do Ministério do Amor, estava na enorme passagem ensolarada, de um quilômetro de extensão, em que estivera no seu delírio intoxicado. Estava na Terra Dourada, seguindo a senda que cortava o pasto roído de coelhos. Podia sentir o relvado curto e novo sob os pés e o sol suave no rosto. Na orla do campo via os ulmeiros, mexendo-se gentilmente, e mais além o riacho onde nadavam os mugens em espraiados verdes sob os chorões.

De repente, levantou-se com um choque de horror. O suor escorria-lhe pela espinha. Ouvira a sua própria voz gritando:

- Júlia! Júlia! Júlia, meu amor! Júlia!

Por um momento, teve uma alucinação esmagadora da sua presença. Ela parecia estar não apenas com ele, mas dentro dele. Era como se tivesse penetrado dentro da pele. Naquele momento, amou-a muito mais do que quando estavam livres e juntos.





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