1984 - Cap. 23: Capítulo XXIII Pág. 302 / 309

Quase se cruzaram sem um gesto; mas ele voltou-se e seguiu-a, sem grande interesse. Sabia não haver perigo, já ninguém se ocupava dele. Ela não falou. Caminhara obliquamente, pela relva, como se tentasse se desvencilhar dele; depois parecera resignar-se a tê-lo ao lado. Dali a pouco estavam no meio duma touceira de arbustos desfolhados e escalavrados, que não serviam nem como esconderijo nem como abrigo contra o vento. Pararam. Fazia um frio nefando. O vento assobiava por entre os galhos secos, e sacudia os pobres crocus sujos. Ele passou o braço pela cintura dela.

Não havia teletela, mas devia haver microfones escondidos; além disso, podiam ser vistos. Não importava, nada importava. Poderiam deitar-se no chão e fazer aquilo se quisessem. Sua carne gelou de horror, só de pensá-lo. Ela não reagiu de modo algum ao toque do braço de Winston; nem ao menos tentou se livrar. Ele soube então o que havia mudado nela. Tinha o rosto macilento, e havia uma longa cicatriz, parcialmente oculta pelo cabelo, rasgando a testa e a fonte; mas não era essa a mudança. Sua cintura engrossara e, de modo surpreendente, enrijara também. Ele lembrou-se de uma vez em que, após a explosão de uma bomba-foguete, ajudara a puxar um cadáver debaixo dos escombros, e como se assustara não apenas com o peso incrível do corpo como também com a rigidez e a dificuldade de segurá-lo, que davam mais a impressão de pedra do que de carne.

O corpo dela dava aquela impressão. Ocorreu-lhe que a textura de sua pele também era muito diferente do que fora.

Não tentou beijá-la, nem falaram. Enquanto atravessavam o portão, de volta, ela olhou-o de frente pela primeira vez. Foi apenas um olhar momentâneo, cheio de desprezo e repugnância.





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