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- Há seis semanas que uso a mesma lâmina - acrescentou, mentindo. A fila deu mais um salto à frente. Quando pararam, ele se voltou e encarou Syme outra vez. Os dois apanharam bandejas de metal, engorduradas, de uma pilha na ponta do balcão.
- Foste ver os enforcamentos, a noite passada? - indagou Syme.
- Estava trabalhando - disse Winston, com indiferença. - Com certeza verei no cinema.
- Pobre substituição - comentou Syme. Seus olhos galhofeiros examinaram o rosto de Winston. Pareciam dizer: "Eu te conheço. Vejo através de ti, sei muito bem porque não foste ver os prisioneiros enforcados." Intelectualmente, Syme era venenoso de tão ortodoxo. Falava com satisfação e júbilo, muito desagradáveis, de ataques de helicópteros a aldeias inimigas, julgamento e confissão de ideocriminosos, execuções no subsolo do Ministério do Amor. Para se conversar direito com ele era essencial afastá-lo desses assuntos, enredando-o, se possível, nas tecnicalidades da Novilíngua, a respeito do que era interessante e bem informado. Winston virou a cabeça um pouco para o lado, para fugir ao exame dos grandes olhos escuros. - Foi um bom enforcamento - prosseguiu Syme, recordando. - Mas creio que estragam o espetáculo quando, amarram os pés do homem. Gosto de vê-los esperneando. Mas acima de tudo, no fim, a língua saltando da boca, azulzinha - azul brilhante. É o detalhe que mais me interessa.
- Outro! - berrou o prole de avental branco, que empunhava a concha de sopa. Winston e Syme empurraram as bandejas por baixo da grade. E cada um recebeu, em segundos, o almoço regulamentar - marmita de metal com um guisado rosa-cinza, um pedaço de pão, um cubo de queijo, uma chávena de Café Vitória, preto, uma tablete de sacarina.