Madame Bovary - Cap. 9: IX Pág. 74 / 382

O Inverno foi rigoroso. As vidraças apareciam todas as manhãs cheias de geada e a luz que através delas se coava, como que por vidros foscos, mantinha por vezes o mesmo tom durante todo o dia. Era preciso acender as luzes desde as quatro horas da tarde.

Nos dias bonitos ela ia até ao quintal. O orvalho deixava sobre as couves finas rendas de prata com longos fios cristalinos que se estendiam de umas às outras. Não se ouviam pássaros, tudo parecia dormir, a latada coberta de palha e a vinha, como uma enorme serpente enferma, sob o espigão do muro, onde quem se aproximasse veria arrastarem-se bichinhos-de-conta com as suas inúmeras patas. Debaixo dos abetos, próximo da abertura na cerca, o sacerdote de tricórnio a ler o seu breviário perdera o pé direito, e o próprio gesso, fendendo-se com a geada, fizera-lhe aparecer feridas brancas na cara.

Depois voltava a subir, fechava a porta, espalhava as brasas e, deixando-se entorpecer ao calor do fogo, sentia cair-lhe de novo o enfado mais pesadamente sobre a existência. Bem lhe apetecia descer ao rés-do-chão para conversar com a criada, mas certo pudor a detinha.

Todos os dias, à mesma hora, o mestre-escola, de boné de seda preta, abria as janelas de sua casa e o guarda-florestal passava, com o seu sabre à cinta. Todas as tardes e todas as manhãs, os cavalos da posta, a três e três, atravessavam a rua para ir beber ao charco. De tempos a tempos ouvia-se tocar a campainha da porta de alguma taberna e, quando havia vento, ouvia-se ranger nas escápulas as duas pequenas bacias de cobre que serviam de tabuleta ao salão do cabeleireiro. Este tinha como decoração uma velha gravura de modas colada num vidro e um busto de mulher feito de cera, com cabelos amarelos. Também o cabeleireiro se lamentava da sua vocação frustrada, do seu futuro perdido e, sonhando com um salão em qualquer grande cidade, como Ruão, por exemplo, próximo do porto, ao lado do teatro, levava o dia todo a passear no percurso entre a regedoria e a igreja, melancólico, à espera da clientela.





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