Madame Bovary - Cap. 30: VII Pág. 325 / 382

VII

Emma foi estóica, no dia seguinte, enquanto o Dr. Hareng, o oficial de diligências, se lhe apresentou em casa com duas testemunhas, para o auto da penhora.

Começaram pelo consultório de Bovary e não incluíram na relação a cabeça frenológica que consideraram um instrumento da sua profissão; mas, na cozinha contaram os pratos, as panelas, as cadeiras, os castiçais e, no quarto de dormir, todas as bugigangas que estavam em cima da prateleira. Examinaram os vestidos, a roupa interior, a casa de banho; e a sua vida, até aos recantos mais íntimos, foi, como um cadáver a que se faz a autópsia, exposta de par em par aos olhares daqueles três homens.

O Dr. Hareng, apertado num casaco preto muito justo, de gravata branca, e com presilhas nas calças muito esticadas, repetia de vez em quanto:

- Dá licença? A senhora dá licença?

Exclamava frequentemente:

- Encantador!... Lindíssimo!

Depois voltava a escrever, molhando a pena no tinteiro de chifre que segurava com a mão esquerda.

Quando acabaram de ver os apartamentos, subiram ao sótão.

Ela conservava ali uma escrivaninha onde estavam fechadas as cartas de Rodolphe. Tinha de ser aberta.

- Ah! É correspondência! - disse o Dr. Hareng com um sorriso discreto. - Mas desculpe, pois tenho de verificar se a caixa não contém outras coisas.

E inclinou ligeiramente os papéis como que para fazer cair napoleões.

Então Emma indignou-se por ver aquela mão grosseira, com dedos vermelhos e moles como lesmas, tocando naquelas páginas em que lhe palpitara o coração.

Finalmente foram-se embora! Félicité entrou. A patroa mandara-a ficar de sentinela para afastar Bovary; e instalaram rapidamente no sótão o guarda da penhora, que jurou não sair dali.

Charles, durante o serão, pareceu-lhe preocupado.





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