Madame Bovary - Cap. 12: III Pág. 98 / 382

Não era só o desejo de ser útil aos outros que levava o farmacêutico a tantos obséquios e cordialidades; por detrás daquilo havia um plano.

Ele infringira a Lei do 19 Ventoso do ano XI, artigo 1.0, que proibe o exercício da medicina a qualquer indivíduo que não seja portador do respectivo diploma; de modo que, devido a denúncias tenebrosas, Homais havia sido chamado a Ruão, à presença do procurador régio, no seu gabinete particular. O magistrado havia-o recebido de pé, com a sua toga, capa de arminho e borla na cabeça. Era de manhã, antes da audiência. Ouviam-se passar no corredor as botas grossas dos polícias e, ao longe, uma espécie de ruído de grandes fechaduras em funcionamento. Os ouvidos do farmacêutico zumbiram-lhe como se fosse cair com uma apoplexia; pôs-se a imaginar as enxovias da prisão, a família lavada em lágrimas, a farmácia vendida, os frascos todos espalhados; e teve de entrar num café e tomar um copo de rum com água de Seltz, para se reanimar.

A pouco e pouco foi enfraquecendo a recordação dessa advertência e ele continuava, como antes, a dar consultas inofensivas no fundo da loja. Mas o presidente da Câmara Municipal não o suportava, tinha colegas invejosos, havia que recear tudo; ligar-se ao Dr. Bovary por meio de gentilezas era atrair o seu reconhecimento e impedir que ele mais tarde viesse a falar, no caso de perceber qualquer coisa. Por isso, todas as manhãs Homais lhe trazia o jornal e muitas vezes, à tarde, deixava uns momentos a farmácia para ir a casa do oficial de saúde dar dois dedos de conversa.

Charles estava triste: a clientela não chegava. Ficava longas horas sentado, sem dizer nada, e ia dormir para o seu consultório ou entretinha-se a ver a mulher costurar. Para se distrair começou a fazer trabalhos braçais em casa e até experimentou pintar o sótão com um resto de tinta deixado pelos pintores.





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