Madame Bovary - Cap. 10: SEGUNDA PARTE – I Pág. 87 / 382

A última claridade do crepúsculo deixava ver que tinha um rosto avermelhado e o corpo atlético.

- Em que posso servi-lo, Sr. Prior? - perguntou a dona da estalagem, apanhando em cima da chaminé um dos castiçais de cobre que ali se encontrava em fila com as respectivas velas. - Deseja tomar alguma coisa? Um gole de cássis, um copo de vinho?

O sacerdote recusou muito delicadamente. Vinha buscar o seu chapéu-de-chuva, de que havia dias se esquecera no Convento de Ernemont, e, depois de pedir à Sr. a Lefrançois que lho mandasse, à noite, ao presbitério, saiu na direcção da igreja, onde se tocavam as trindades.

Quando o farmacêutico deixou de lhe ouvir o ruído dos passos na praça, disse que fora muito incorrecta a maneira de ele proceder. Aquela recusa de aceitar um refresco parecia-lhe uma hipocrisia das mais odiosas; todos os padres faziam patuscadas às escondidas e procuravam fazer-nos voltar ao tempo dos dízimos.

A hospedeira tomou a defesa do padre.

- Seja como for, ele seria capaz de dobrar quatro da sua estatura debaixo do joelho. No ano passado ajudou a nossa gente a recolher a palha; é tão forte que carregava até seis molhos de cada vez!

- Bravo! - disse o farmacêutico. - Mande então as suas filhas confessarem-se a espertalhões desse temperamento! Eu cá, se estivesse no governo, exigia que sangrassem os padres uma vez por mês. Sim, Sr, Lefrançois, todos os meses uma abundante flebotomia, no interesse da polícia e dos costumes!

- Cale-se lá, Sr. Homais! O senhor é um ímpio! Não tem religião!

O farmacêutico replicou:

- Tenho uma religião, a minha religião, e até tenho mais que todos eles com as suas momices e imposturas! Pelo contrário, creio em Deus! Creio no ser supremo, num Criador, seja ele quem for, pouco importa, que nos pôs neste mundo para cumprir os nossos deveres de cidadãos e chefes de família; mas não tenho necessidade de ir a uma igreja beijar salvas de prata e engordar à minha custa uma cambada de farsantes que vivem melhor do que nós! Posso honrar a Deus da mesma maneira num bosque, num campo, ou até contemplando a abóbada etérea, como os antigos.





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