Dez horas. Abriu-se então a porta da alcova, que rangeu ligeiramente na coiceira desengonçada, e saiu um sujeito de mediana estatura, ombros largos, barba toda com raras cãs, olhos brilhantes, pálido-trigueiro, um nariz adunco. Representava entre trinta e seis e quarenta anos. Sentou-se à braseira e preparou um cigarro, vagarosamente, que acendeu na aresta chamejante de uma brasa. Com o cigarro ao canto dos lábios e um olho fechado pelo contacto agro do fumo, foi abrir uma das vidraças, e pôs fora a mão a sondar a temperatura. Coxeava um pouco. Recolheu a mão com desagrado e fechou a janela. Vinha subindo a escada de comunicação com a cozinha uma mulher idosa, em mangas de camisa, meias azuis de lã e ourelos achinelados. Pediu licença para entrar, fez uma mesura de joelhos sem curvar o tronco, e perguntou:
- Vossa majestade passou bem?
- Otimamente, senhorinha, passei muito bem.
- Estimo muito, real senhor. O senhor abade foi chamado às oito horas para confessar uma freguesa que está a morrer de uma queda, e deixou dito que pusesse o almoço a vossa majestade, se ele não chegasse às nove e meia.
- Quando quiser, senhorinha, quando quiser, visto que o abade deu essas ordens e quem manda aqui é ele.
Da cozinha vaporava um perfume de salpicão frito com ovos. A sua majestade farejava com as narinas anelantes num forte apetite. A criada voltou com toalha, guardanapo, louça da índia, talheres de prata, e uma travessa coberta. A sua majestade, muito familiar, tirou de sobre a mesa uns cadernos escritos, cosidos com seda escarlate, e um grande tinteiro de chumbo com penas de pato.
- Ora vossa majestade a incomodar-se! Valha-me deus! Eu tiro isso, real senhor! Não que uma coisa assim! Um rei a..
E o real senhor:
- Ande lá, senhorinha, que eu ajudo.