CAPÍTULO IX Naquele tempo (1845), no porto, rua de S. Sebastião, n° 1, morava o padre luís de sousa couto (*), paleógrado da misericórdia. Representava sessenta e tantos anos, uma nutrição doentia, pesado, com os pés túrgidos da gota, cheios de nodosidades.
[(*) O autor teve relações muito saudosas com este venerando sacerdote, que em 1851 residia num antigo casarão da rua de santo António, que depois se transformou em casa de banhos. Por esse tempo, se congregavam ali os homens eminentes, por inteligência e haveres, do partido realista. Neste ano, padre luís de sousa passava os seus dias rodeado de pergaminhos, imobilizado numa poltrona, gemendo as dores da gota. Morreu muito pobre e muito desamparado.]
Era jovial. Tinha um sorriso lhano, conversava morosamente pausado com admirável correção; deixava-se interromper sem impaciências e não interrompia nunca os desatinos, maçadas, e até as tolices de quem quer que fosse. E ouvia muitas. Este padre obscurecido na sua paleografia que lhe dava oito tostões por dia, naquela asquerosa alfurja chamada rua de S. Sebastião, com o aljube à esquerda e as imundícies da pena ventosa à direita, era o impulsor, a alma, o cérebro do gigante miguelista nas províncias do norte. A junta de lisboa consultava-o. Ribeiro saraiva enviava-lhe de londres os elementos para os seus cálculos, pedia-lhe conselhos; e D. Miguel escrevia-lhe frequentemente. Dizia-se que o príncipe proscrito o elegera bispo ou patriarca de lisboa - não me recordo qual era a mitra.
A sua presença venerável impunha sem artifício; uma grande bondade obsequiadora; não proferia palavra ofensiva dos seus adversários políticos; não aceitava donativos dos seus correligionários; vivia com severa parcimónia dos seus 800 réis havidos da santa casa, e morreria de penúria antes de pedir ao governo liberal a paga dos seus lavores ilustrados, corretíssimos de intérprete de velhos e quase indecifráveis códices.