- Se, por exemplo, servisse aos nossos interesses atirar ácido sulfúrico no rosto duma criança, farias isso?
- Faria, sim.
- Estás disposto a perder tua identidade e viver o resto da tua vida como garçon ou estivador?
- Estou.
- Estás disposto a te suicidar, se e quando isso te for ordenado?
- Sim.
- Estais dispostos, os dois, a vos separardes e nunca mais vos tornardes a ver?
- Não! - irrompeu Júlia.
A Winston pareceu haver uma longa pausa antes de responder. Por um momento até lhe pareceu estar privado da fala. A língua movia-se sem som, formando primeiro a sílaba de uma palavra, depois de outra, inúmeras vezes. Até pronunciá-la, não sabia ao certo o que diria.
- Não - repetiu, por fim.
- Fizeste bem em me dizer - disse O'Brien. - É necessário saber tudo.
Voltou-se para Júlia e acrescentou, com voz um pouco mais expressiva:
- Compreendes que, mesmo que ele sobreviva, talvez seja pessoa diferente? Pode ser que tenhamos de dar-lhe nova identidade. Seu rosto, seus movimentos, a forma de suas mãos, a cor do cabelo... até a voz poderão ser diferentes. E tu também te podes transformar numa pessoa diferente. Nossos cirurgiões podem alterar as pessoas, torná-las irreconhecíveis. Às vezes é necessário. Às vezes chegamos a amputar um membro.
Winston não pôde impedir outra olhada de soslaio ao rosto mongol de Martin. Não havia cicatrizes visíveis. Júlia empalidecera um pouco, e suas sardas se destacavam mais, porém olhava O'Brien nos olhos. Murmurou algo que parecia ser assentimento.
- Bom. Então está resolvido.
Havia uma caixa de cigarros, de prata, sobre a mesa. Com ar distraído, O'Brien ofereceu-a aos outros, serviu-se e depois levantou-se, pondo-se a passear de um lado para outro da sala, como se pensasse melhor de pé.