Um homenzinho de preto tomou então a palavra e expôs habilmente as queixas da companhia. Referiu-se com tanta energia à revogação do édito de Nantes, deplorou de modo tão patético a sorte de cinquenta mil famílias fugitivas e de cinquenta mil outras convertidas pelos dragões, que o Ingénuo por sua vez desatou em pranto.
- Como se explica então - dizia ele - que tão grande rei, cuja glória se estende até os hurões, se prive de tantos corações que poderiam amá-lo e de tantos braços que poderiam servi-lo? –
É que o enganaram, como aos outros grandes reis. Convenceram-no de que, logo que dissesse uma palavra, todos os homens pensariam como ele, e que nos faria mudar de religião como o seu músico Lulli muda em um instante os cenários de suas óperas. Não só perde ele quinhentos a seiscentos mil súditos muito úteis, como os faz inimigos seus; e o rei Guilherme, que é atualmente senhor da Inglaterra, constituiu vários regimentos desses mesmos franceses que poderiam combater por seu monarca. Tanto mais espantoso é esse desastre, porquanto o Papa reinante, a quem Luís XIV sacrifica parte do povo, é seu inimigo declarado. Vêm ambos mantendo, há nove anos, uma querela violenta, a qual atingiu a tais extremos, que a França pensou ver enfim quebrar-se o jugo que há tantos séculos a submete a esse estrangeiro, e que, principalmente não lhe mandaria mais dinheiro, o que é o primeiro móvel dos assuntos deste mundo. Parece, pois, evidente que enganaram a esse grande rei no tocante aos seus interesses e à extensão de seu poder, frustrando-lhe também a magnanimidade do coração.