Nesse momento, a sua situação deparou-se-lhe como um abismo. O peito arfava-lhe como se fosse despedaçar-se. Depois, num arrojo de heroismo em que quase se sentiu alegre, desceu a encosta a correr, atravessou a prancha das vacas, o caminho, a alameda, o mercado, e chegou à loja do farmacêutico.
Não havia lá ninguém. Ia entrar; mas, com o barulho da campainha, alguém podia aparecer; e, esgueirando-se pela cancela, retendo a respiração, apalpando as paredes, avançou até à porta da cozinha, onde ardia uma vela em cima do fogão. Justin, em mangas de camisa, levava na mão um prato.
- Ah! estão a jantar. Esperemos então. Ele voltou. Ela bateu nos vidros. Ele saiu.
- A chave! aquela lá de cima, onde estão os…
- Como?
E olhava-a, muito admirado da palidez do rosto dela, que contrastava em alvura com o fundo negro da noite. Pareceu-lhe extraordinariamente bela e majestosa como um fantasma; sem compreender o que Emma queria, pressentiu qualquer coisa de terrível.
Ela, porém, repetiu insistentemente, em voz baixa, num tom meigo, subornador:
- Quero-a! Dá-ma.
Como o tabique era delgado, ouviam-se os garfos a tilintar nos pratos na casa de jantar.
Ela dizia que precisava de matar ratos que não a deixavam dormir. - Mas tenho de prevenir o patrão.
- Não! Espera!
Depois, com um ar de indiferença:
- Eh!, não vale a pena, que eu depois lhe digo. Vamos, alumia-me! Entrou no corredor para onde dava a porta do laboratório. Na parede
estava pendurada uma chave com a etiqueta: cafornaum.
- Justin! - chamou o boticário, que se impacientava.
- Vamos subir!
Ele seguiu-a.
A chave girou na fechadura e ela foi direita à terceira prateleira, tal a exactidão com que a memória a guiava; agarrou no frasco azul, arrancou-lhe a tampa, meteu-lhe a mão e, retirando-a cheia de um pó branco, pôs-se a comê-lo directamente.