As Pupilas do Senhor Reitor - Cap. 26: XXVI Pág. 179 / 332

XXVI

Quando contaram a João Semana o que se passara entre Daniel e a família dos Esquinas, o velho cirurgião não o quis acreditar.

Teve, porém, de ceder à unanimidade das opiniões, e então não se fartou o nosso homem de benzer-se, de espantado.

João Semana era intolerante em coisas de moral, e principalmente médica. Para bons ditos, anedotas e contos, ainda que às vezes temperados com o sal de Boccacio, de Lafontaine, e da rainha de Navarra, tinha grande indulgência o velho clínico, que, por toda a parte, os contava também, sem escolha de auditório, nem de ocasião; mas a menor aventura que, de longe sequer, se aproximasse do género das de que ele fazia crónica de tão boa vontade, dificilmente encontraria remissão no seu tribunal. Se o réu era um colega, crescia então de ponto a austeridade. Por isso o procedimento de Daniel encontrou nele um severíssimo juiz.

Forçoso é, porém, dizer que uma circunstância havia em todo aquele episódio, que, mais que nenhuma, o escandalizara. De facto, conquanto manifestamente o não dissesse, o que em extremos o irritava, era ter Daniel caído na fragilidade de fazer versos. João Semana não tinha em grande conta de coisa séria a poesia; e então poesia daquela! Inda se fosse um soneto, vá. O soneto tem um aspecto sério, grave e discreto, que não derroga a dignidade de ninguém.

Qualquer desembargador, cónego, ministro de estado honorário, ou lente jubilado - quatro das mais sérias entidades sociais - pode fazer um soneto sem agravo da sisudez oficial; mas aquela poesia travessa, ligeira, folgazã, de Daniel, poesia de um género novo para João Semana, poesia sem musas nem Apolo, fê-lo sair fora de si.

Joana teve que o ouvir naquele dia.

- Aí está o que você faz, aí está - dizia ele - por sua causa, pela desastrada lembrança que teve de mandar aquele doido em meu lugar é que tudo isto sucedeu.





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