IX Depois da morte da madrasta, a sorte de Margarida tomou uma feição mais favorável.
Vivendo na companhia da irmã, nunca mais teve de suportar aquelas humilhações continuadas, que a faziam corar.
Antes, no modo por que era tratada em casa, parecia ser ela a senhora de tudo, e Clara, a que recebia o benefício; contra estas aparências só a sua modéstia protestava.
Clara possuía um coração excelente, mas faltava-lhe cabeça para superintender nos negócios da casa; por isso, pedira a Margarida que os gerisse ela e lhe deixasse ir gozando a apetecida liberdade dos seus dezoito anos.
O pároco que ficara tutor das duas órfãs, sancionou e dirigiu com os seus conselhos esta disposição de coisas.
Mas um tal sistema de viver não podia bastar por muito tempo a Margarida. Havia no carácter desta rapariga um fundo de dignidade pessoal que lhe não deixava aceitar a vida plácida, que cordialmente a irmã lhe talhara.
Habituara-se muito cedo ao trabalho e com ele contava.
- Se o desprezo agora - dizia ela a si mesma, pensando nisto - quem sabe se um dia, ao procurá-lo, ele me fugirá?
Sentia-se jovem, com forças e coragem; envergonhava-se da ociosidade. Entre os projectos, que formou então, um lhe sorria sempre mais que todos.
Margarida tinha uma educação pouco vulgar para a sua condição. Várias circunstâncias haviam gradualmente concorrido para lha aperfeiçoar. Daniel fora, como sabemos, o seu primeiro mestre, e, quando outra razão não houvesse, as saudades que a vista e a leitura dos livros ainda lhe causavam, lembrando-lhe aquele tempo, levá-la-iam a procurá-los com prazer. Seguira-se a Daniel o reitor, conforme ao que prometera ao discípulo. Vendo o padre a inclinação da sua pupila para a leitura, fazia-lhe, de quando em quando, alguns presentes de livros, depois de os passar pela crítica dos seus rígidos princípios morais, e julgá-los salutares.