XXVII Margarida ficou só na sala.
Viera aumentar-lhe a turbação, em que estava já, esta cantiga de Clara.
Andava-lhe muito ligada a ideias do passado, para a poder escutar com indiferença.
Aquela toada era para Margarida como as palavras misteriosas que, em certos contos de fadas, se diz terem o condão de evocar dos páramos mais agrestes, jardins, florestas e palácios encantados; povoara-se-lhe a imaginação, ao ouvi-la, um pouco de recordações ao princípio, e depois, muito de fantasias.
Encostada ao peitoril da janela, e apoiado o rosto nas mãos, assim ficou por muito tempo com o olhar vago e o pensamento mais vago do que o olhar ainda.
Se o espírito, ao sair destas exaltadas abstracções, se volta de súbito para a realidade do presente, o desencantamento é fatal e amargo. Entra-nos então no coração um profundo desgosto da vida, e como que se nos quebram as forças para continuar a acção.
Estava passando por um desses estados o espírito de Margarida.
As vozes joviais da irmã e os risos de Joana chegavam-lhe aos ouvidos; e afligiam-na aqueles sinais de alegria.
As vivas cores das rosas e dos cravos atraíam-lhe, a seu pesar, as vistas para os alegretes do jardim, e impacientavam-na; quase lhes queria mal por aquele aspecto festivo.
Quando, em épocas de provação para a alma, a sós com os nossos pesares e as nossas lágrimas, escutamos lá fora o ruído ou divisamos o esplendor das festas, alguma coisa estremece dolorosamente em nós.
Sentia-o Margarida naquele instante e tanto lhe crescia o mal, que, para fugir-lhe, ergueu-se e passeou com agitação por algum tempo na sala.
- E porque não hei-de eu também distrair-me, como se distrai a Clara? - pensava ela. - Virão já de nascimento estes génios assim? Mas como se há-de acreditar que o Senhor queira fazer cair sobre a criatura, que ainda o não ofendeu, este grande castigo de uma tristeza tamanha? Não, não pode ser.