O Retrato de Ricardina - Cap. 13: CAPÍTULO XIII - NORBERTO CALVO Pág. 81 / 178

- Sejamos cordatos - volveu António Maria - . Parece-me acertado que não nos deixemos matar, ou pescar, que importa o mesmo, se não é pior. Sair daqui é temeridade; passar para acolá é prudência, porque ali reflui menos água, e poderemos esperar algum tempo a ver se o inimigo retrocede.

- Pois vamos para além - concordaram, atravessando de mãos dadas até se acocorarem cosidos com o pilar em frente.

O padre, passada meia hora de silêncio nos caminhos e montes, pediu que o deixassem espiar de um alto por entre os rochedos.

- Vai - disse António Maria - , mas não faças como a pomba da arca. Em vez de ramo de oliveira, traz algum fruto destas árvores paradisíacas.

- Bolotas, por exemplo?

- Boletas, é mais português. Ceva-te, e conduz as que te sobram.

Volveu o futuro comandante do corpo legionário da Junta suprema. dizendo que não vira fôlego vivo.

- Nem morto? - perguntou António Maria. - Convencidos de que somos anfíbios, convinha saber se também somos carnívoros. Qual de vocês não comia agora um boi?

- Eu por mim - disse Bernardo - não tenho sombra de apetite. O homem é uma rija monstruosidade, não te parece?

- Rija e abominável... - acrescentou o alentejano. - Esta força que nos permite encarar sem lágrimas a nossa situação, que é? Impassibilidade de tigre que estende as garras sobre o cadáver da presa e encara destemido o caçador que lhe faz a pontaria às espáduas. Nenhum de nós se lembrou ainda que está desgraçado e perdido para sempre?

- Todos se lembrariam... - murmurou Bernardo.

- A perdição relativa - emendou o padre.

- Que é a perdição relativa? - perguntou Carneiro.

- É a comparada ao aproveitamento que se perdeu. Eu não acho abominável a valentia da alma, que sobreveio à fraqueza de um vil feito.





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