Quando a tristeza me cravar as unhas, hei de sacudi-la. Tenho ao meu favor que o remorso de assassino me não há de entrar no peito com ela.
- Mas a honra, a pátria, a família?... Que coisas são estas, padre? Poderemos jamais restaurá-las?
- Não sei. Conservemos a vida.
- Boa palavra! - disse António Maria. - Segue-se portanto deliberarmos acerca do nosso destino. Para onde vais tu, Bernardo?
- Para minha casa, e de lá não sei para onde.
- E tu, padre?
- Para onde os fados me levarem.
- César era mais cristão, que disse Deus e não fados. Quo Deus impulerit. E tu? - perguntou ao inominado.
- Que sei eu! Não tenho mãe, nem pai, nem irmãos Leva-me contigo.
- Eu vou para o Alentejo, e de lá para Espanha. Mas é forçoso que sigamos daqui avante separados. A união pode perder-nos. Quem quiser juntar-se comigo, e quinhoar do meu pão, espere-me ou espere na raia de Espanha.
Ao cair da tarde, abraçaram-se e deram o último adeus com os olhos enxutos. Três léguas arredadas do ponto em que se afastaram pensou Bernardo Moniz que teria palmilhado, quando, ao romper da manhã, se sentiu desfalecer de cansaço e extenuação. Não obstante a sua crença da rija monstruosidade do homem, pensou que a morte lhe não deixaria ver as alvoradas de mais um dia. Figurou-se-lhe uma visão que lhe dulcificava a morte. Ricardina com a cara caída para o peito, amarelida e arregoada de lágrimas já frias, ia também morrer. Os objetos mostravam-se-lhe todos à feição da sua agonia. As nuvens alvacentas, as estrelas esmaecidas, as boninas, as árvores, os fraguedos, os córregos, tudo se lhe desfazia num vórtice de cinzas, que lhe regirava em redor da cabeça aturdida. O desgraçado apertava as fontes e cerrava os olhos. Queria reabri-los para os levantar à piedade do Céu.