O AntiCristo - Cap. 33: Capítulo 33 Pág. 50 / 117

XXXII

Repito que me oponho a todos os esforços para introduzir o fanatismo na figura do Salvador: a própria palavra imperieux (imperioso), usada por Renan, sozinha é suficiente para anular o tipo. A “boa-nova” nos diz simplesmente que não existem mais contradições; o reino de Deus pertence às crianças; a fé anunciada aqui não é mais conquistada por lutas — está ao alcance das mãos, existiu desde o princípio, é um tipo de infantilidade que se refugiou no espiritual. Tal puberdade retardada e incompleta dos organismos é familiar aos fisiologistas como sintoma da degeneração. A fé desse tipo não é furiosa, não denuncia, não se defende: não empunha “espada” — não entende como poderia um dia colocar homem contra homem. Não se manifesta através de milagres, recompensas, promessas ou “escrituras”: é, do princípio ao fim, seu próprio milagre, sua própria recompensa, sua própria promessa, seu próprio “reino de Deus”. Essa fé não se formula — simplesmente vive, e assim guarda-se contra fórmulas. Com certeza, a casualidade do ambiente, da formação educacional dá proeminência aos conceitos de certa espécie: no cristianismo primitivo encontramos apenas noções de caráter judaico-semítico (— a de comer e beber em comunhão pertence a esta categoria — uma ideia que, como tudo que é judaico, foi severamente fustigada pela Igreja). Cuidemo-nos para não ver nisso tudo mais que uma linguagem simbólica, uma semântica, uma oportunidade para falar em parábolas. A teoria de que nenhuma palavra deve ser tomada ao pé da letra era um pressuposto para que este antirrealista pudesse discursar.





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