Madame Bovary - Cap. 23: XV Pág. 251 / 382

Devia ter, pensava ela, um amor inexaurível, para o derramar sobre a multidão em tão grandes eflúvios, Todas as suas veleidades difamatórias se desvaneceram com a poesia do papel, que a invadia, e, atraída para o homem pela ilusão da personagem, procurou imaginar o que seria a vida dele, aquela vida retumbante, extraordinária, esplêndida, e que poderia ter sido a dela se, entretanto, o acaso tivesse querido. Ter-se-iam conhecido, ter-se-iam amado! Com ele, por todos os reinos da Europa, ela teria viajado de capital em capital, compartilhando com ele as fadigas e o orgulho, apanhando as flores que lhe atirassem, bordando-lhe os fatos ela própria. Depois, todas as noites, no fundo dum camarote, por trás das rótulas douradas, recolheria, maravilhada, as expansões daquela alma que teria cantado unicamente para ela; enquanto representava no palco, tê-Ia-ia fixado com o olhar. Uma súbita loucura se apoderou dela: ele fixava-a de certeza! Sentiu desejo de correr para os seus braços a fim de se refugiar na sua força, como na própria encarnação do amor, e dizer-lhe, gritar-lhe: «Rapta-me, leva-me, fujamos! Para ti, para ti!, todos os meus ardores e todos os meus sonhos!»

Desceu o pano.

O cheiro do gás misturava-se com a respiração da assistência; o vento feito pelos leques tornava a atmosfera mais sufocante ainda. Emma quis sair; a multidão atulhava os corredores e ela deixou-se novamente cair na poltrona, com palpitações que a sufocavam. Charles, com medo de a ver desmaiar, correu ao bufete para lhe trazer um copo de orchata.

Teve uma enorme dificuldade em regressar ao camarote, porque a cada passo lhe davam cotoveladas, por causa do copo que segurava com ambas as mãos, e chegou a entornar a maior parte do conteúdo nas costas duma ruanense em mangas curtas, que, sentindo o líquido frio a escorrer-lhe pelos rins, atirou gritos de pavão, como se a estivessem assassinando.





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