As Pupilas do Senhor Reitor - Cap. 16: XVI Pág. 106 / 332

Eu já disse que Margarida não era de natureza tão superior, que não tivesse destas desculpáveis fraquezas. Muito para apreciar é já a placidez nas acções, se como nela se não desmente nunca; seria exigência demasiada e um excessivo querer apurar a natureza humana ao grau de perfeição quase divina, pretender que, no mundo oculto dos pensamentos e dos afectos, reine também a inalterável serenidade, que só pode ser de anjos e nunca de criaturas a quem de contínuo os vendavais das paixões salteiam.

O que posso assegurar a respeito de Margarida - e já não é pouco assegurar - é que este movimento de ciúme? - nem eu sei se tal nome lhe posso dar - não se envenenou, convertendo-se em má vontade contra o objecto que lho desafiara.

Margarida não sentiu, para com a irmã, nenhum desses odiozinhos feminis, que em tantas tempestades se desencadeiam às vezes.

Calou-se, sorriu até, e pensou consigo:

- E de que me serviria que fosse de outra sorte? Melhor é que a memória lhe seja sempre infiel; melhor, muito melhor para o sossego do meu espírito. Ainda bem.

Era ainda a razão que falava; mas o coração? Ai, o coração!...

É inevitável a luta, sempre que um espírito vigoroso e lúcido anda associado a um coração que sente, que se comove sob a influência dos estímulos naturais dos afectos humanos.

Quando o coração é de gelo, a razão dirige desafogada, imperturbável, em linha recta, o caminho da vida; quando a razão abdica e o coração domina, o movimento é irregular, mas livre; caprichoso, mas resoluto; funesto, mas incessante; porém, se o coração e a cabeça medem forças iguais, a cada momento param para lutar, como atletas destemidos. De qualquer lado que tenha de se decidir a vitória, será disputada, até ao último instante, pelo contendor vencido; a pausa terá sido inevitável; a reacção, enérgica; e a crise, violenta.





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