- Como queres tu que eu lhes perdoe o terem gozado sem mim daquela santa vida de convento?
- Santa, sim; porém sem mortificações, não.
- Oh! decerto que não. Os melhores cozinheiros têm às vezes os seus descuidos, e os paladares de V. Rev.ma, lá de quando em quando, aturavam o esturro no arroz, sal a mais na sopa, pimenta de menos no guisado, ou outra coisa assim, lá isso...
- Valha-te não sei que diga. A vida é para ti, homem, que, com oitenta, estás fero e robusto, e levas jeito de assistir ao nascimento do século vinte.
- É para veres de que fêveras eu sou. Se tivesse a tua vida, viveria como Noé. Mas tu estás de palanque e à fresca, e eu aqui estatelado a dar-te trela. Adeus, meu amigo.
- Olha cá, espera, homem. Então nem um cálice do meu bastardo, hem? Olha que é do que tu gostas.
- Prefiro uma garrafa em minha casa.
- Lá franco no pedir és tu! Mas do que ninguém se gaba é de saber o gosto ao teu moscatel.
- Querias talvez que eu te mandasse um presente de vinho?!
Era o que me faltava! Presentes de vinho! E a um frade!...
E, dizendo isto, pôs-se a caminho, achando-se, dentro em pouco, a distância já considerável da residência.
De repente, como se lhe ocorresse uma lembrança, cuja comunicação não podia sofrer demoras, voltou de novo atrás, e elevando a voz:
- Ó Abade? tu não sabes a história daquele frade franciscano, que...?
- Não sei, não; ora conta lá, João Semana, conta - disse o reitor, debruçando-se no peitoril da janela, e já com aspecto risonho.
- Havia lá no convento - principiou João Semana - uma pintura muito grande, representando a ceia de Cristo; e era esta pintura a que mais atraía as meditações piedosas do tal reverendo, o qual de olhos fitos naquele quadro passava horas e horas esquecido de tudo o mais.