Eu tinha lido, dias antes, a judiciosa crítica de uma dama inglesa à nossa costumeira de desorelhar e derrabar gatos. Ela, Lady Jackson, escreve que lhe fazem compaixão os pobres bichanos que, sem cauda nem orelhas, estão como que envergonhados de si mesmos. Excelente senhora!
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Pedi que me apresentassem ao reitor de Caldelas na feira de santo urso. Achei-lhe um rosto convidativo, animador a entabular-se com ele uma indagação de curiosidades sentimentais.
Fazia respeitável a sua batina sem nódoas o padre Osório. Parece que também as não tem na vida. Passa por ser um velho triste, que não teve mocidade, nem as ambições que suprem os doces afetos do coração mutilados pelo cálculo ou congelados pelo temperamento. Há trinta e dois anos que pastoreia uma das mais pobres freguesias do arcebispado. Pregou alguns anos com aplauso dos entendidos e inutilidade dos pecadores. A retórica é a arte de falar bem; mas os vícios são a arte de viver bem e alegremente. Assim se pensa, embora não se diga.
Como pregava gratuitamente, o vigário de Caldelas era chamado por todos os mordomos e confrarias festeiras. Quando se esgotavam os panegíricos dos santos mais ou menos hipotéticos, pediam-lhe que pregasse da cura milagrosa de umas maleitas ou de um leicenço - casos que a pobre natureza e o periódico chamado esculápio só de per si não poderiam explicar.
O vigário subia ao púlpito e improvisava coisas de grande engenho em linguagem muito singela. Afirmava que deus era tão bom, tão previdente, que dera à condição enfermiça do homem forças vitais, sobresselentes que resistiam à destruição; e que a natureza, grande milagre do seu criador, só de per si era bastante para a si mesma se restaurar. Ora, um abade rico, bacharel em teologia, que lhe ouvira estas ideias assaz naturalistas, perguntou-lhe, à puridade, se ele negava os milagres.