Ouvia ainda o riso alegre dos rapazes pendurados nas macieiras; o quarto cheirava ao perfume dos seus cabelos, e o vestido roçava-lhe nos braços com um ruído faiscante. Aquela que ali estava era a mesma!
Ficou assim muito tempo a recordar todas as felicidades perdidas, as suas atitudes, os gestos, o timbre da voz. Após um desespero, surgia logo outro, e assim por diante, inesgotavelmente, como as ondas dum lago que transborda.
Sentiu uma terrível curiosidade: lentamente, com a ponta dos dedos, palpitando, levantou o véu. Mas soltou um grito de horror que acordou os outros dois. Arrastaram-no para a sala, em baixo.
Depois Félicité veio dizer que ele pedia cabelos.
- Corte! - respondeu o farmacêutico.
E, como ela não sentisse coragem, ele mesmo avançou com a tesoura na mão. Tremia tanto que picou a pele das fontes, em vários sítios. Por fim, retesando-se contra a emoção, deu duas ou três grandes tesouradas ao acaso, deixando marcas brancas naquela linda cabeleira preta.
O cura e o farmacêutico voltaram a entregar-se às suas actividades, não sem dormir um pouco de vez em quando, do que se acusavam reciprocamente sempre que tornavam a despertar. Bournisien aspergia então o quarto com água benta e Homais espalhava no chão um pouco de cloro.
Félicité tivera o cuidado de pôr em cima da cómoda uma garrafa de aguardente, um queijo e um bolo grande. O boticário, que já não aguentava mais, suspirou pelas quatro horas da manhã:
- Palavra que me apetecia comer qualquer coisa!
O eclesiástico não se fez rogar; saiu para ir dizer a sua missa e voltou; depois comeram e beberam à saúde um do outro, fazendo um pouco de chacota, sem saberem porquê, excitados por aquela vaga de alegria que se apodera das pessoas depois de cenas de tristeza; e, ao último calicezinho, o padre disse para o farmacêutico, com uma pancadinha no ombro:
- Acabaremos por nos entender!
Encontraram em baixo, no vestíbulo, os operários que vinham a chegar.