As Pupilas do Senhor Reitor - Cap. 4: IV Pág. 18 / 332

Margarida resignou-se a não entender.

Uma terceira interrogação. Desta vez foi a palavra pragmática que a originou.

Daniel estava em maré de infelicidades. Esta acabou de o impacientar.

Tirando o livro comprometedor das mãos da discípula, disse com certo despeito mal encoberto:

- Deixa-te de estudar, Margarida; não estou agora para isso.

- Mas depois... amanhã...

- Amanhã? Que tem? Sossega que não te castigo. E demais inda tens muito tempo. Não vês que eu só venho de tarde?

- Mas...

- Mas... agora não quero que estudes, quero que cantes.

- Ora cantar! Que hei-de eu cantar?

- A cantiga da morena.

- Eu não gosto dela.

- Não?

- Eu, não.

- Então qual gostas mais, Guida? - perguntou Daniel, dando, à pergunta e sobretudo àquela familiar alteração do nome de Margarida, uma música de afectuoso galanteio, que não deixaria ficar mal ninguém.

- A da Cabreira é muito mais bonita.

- Já me não lembra bem. Pois então a da Cabreira.

- Agora não.

- Agora sim; e porque a não hás-de cantar agora?

- A minha irmã Clara é que a sabe cantar bem; eu não.

- Ora adeus, ela é ainda uma criança - disse Daniel com um soberbo gesto de homem. - Eu quero-a ouvir a ti.

- Eu julgo que nem a sei.

- Sabes, sabes, vamos a ver.

- Olhe... eu canto, mas...

E Margarida pôs-se então a cantar e com voz tão sonora e agradavelmente infantil, que, se o reitor estivesse despreocupado, numa posição mais cómoda e disposto a julgar com imparcialidade, confessaria que era excelente. Mas, na ausência destas condições de juízo desapaixonado, foi um crítico como quase todos.

Aí vai o que ela cantava, em uma dessas singelas e monótonas melopeias de quase todas as nossas xácaras populares:


Andava a pobre cabreira
O seu rebanho a guardar,
Desde que rompia o dia
Até a noite fechar.





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