As Pupilas do Senhor Reitor - Cap. 21: XXI Pág. 141 / 332

Imaginem uma interminável exposição de todos os incómodos sentidos há vinte anos, e cortada de variados episódios, alheios ao assunto principal ou mantendo com ele laços imaginários.

A propósito da moléstia, veio, por exemplo, a campo a história minuciosa de uma demanda sobre uma pensão de duas frangas, o relatório das despesas feitas com os melhoramentos em uma propriedade sua, e as desavenças entre ele, tesoureiro da confraria do Sacramento, e o secretário da mesma.

Daniel escutava-o distraído.

No fim, fundando-se em uma ou outra circunstância, que lhe ficara de todo o arrazoado, fez o diagnóstico, e formulou alguns preceitos médicos, mencionando, entre outros medicamentos que aconselhou, as preparações de arsénico.

Lembrança imprudente!

À palavra arsénico, João da Esquina estremeceu e de novo se lhe assombrou o olhar de desconfiança.

A quarta das opiniões teóricas de Daniel, as quais lhe tinham sido referidas por José das Dornas, aparecia-lhe agora de novo, com toda a sua aparência sinistra e homicida.

- Arsénico! - exclamou ele com voz quase rouca de susto e de indignação. - O senhor quer que eu tome arsénico?!

- Que dúvida? - respondeu Daniel. - É um medicamento heróico, prodigioso em muitos casos.

- Eu tenho conhecido os prodígios que ele obra. Vale por dois gatos!

- Ora adeus! a questão está na maneira de o tomar.

- Arsénico! Mas que ideias! Esta não esperava eu! Arsénico!

- Está enganado. O arsénico até...

- Até engorda também, não é verdade? - perguntou o tendeiro, com amarga ironia na voz.

- E ainda que lhe pareça que não...

- Para o senhor vale tanto como o toucinho. Eu já cá sabia.

- Mas ouça. Olhe... na Áustria... na Áustria os cavalos de boa raça recebem na aveia uma porção de arsénico, o qual lhes dá um aspecto luzente, elegante, vigoroso e inexcedível.





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