A Queda de um Anjo - Cap. 8: Capítulo 8 Pág. 37 / 207

É o caso de eu lhe dizer como Apeles ao sapateiro que lhe censurava a pintura: ne sutor ultra crepidam; o que em linguagem quer dizer: «Não analise o sapateiro da chinela.» Os circunstantes e a vítima fizeram-se de cor do nariz de Calisto. Estas passagens, significativas do salgado espírito do provinciano, sobredoiravam a reputação que o trazia nas boas graças da fidalguia realista.

Sabia Calisto, como profundo genealógico, que existia ilustríssima parentela sua em Lisboa; porém, pesavam graves motivos para que ele não quisesse recordar parentesco remoto com tal gente. Era o grão caso que, nos tempos do Mestre de Avis, estava na corte um Martim Annes de Barbuda, da casa de Agra de Freimas, o qual conjurava com o Mestre na façanha do assassínio do conde Andeiro. Até aqui havia muito para que o honrado português se desvanecesse de tal parente. Martim Annes, todavia, temeroso ou arrependido depois do feito, passou-se a Leonor Teles, e com ela e sua família se foi a Espanha, onde morreu, desprezado e amaldiçoado dos Portugueses. Na época de D. Duarte, os descendentes de Martim voltaram ao reino, e conseguiram perdão, e posse dos seus haveres confiscados para a coroa. Eis aqui a razão do ódio de Calisto à raça do mau português.

Estava ele, um dia, folheando a reformação das leis de 1560 por Diogo de Pina, no intento de cravejar de erudição um projecto de lei sumptuária, quando lhe anunciaram a visita do conde do Reguengo. Calisto estremeceu, e disse de si consigo: «Vens ver o que eram e o que são os legítimos Barbudas de Agra de Freimas… Sê bem-vindo!»





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