Era por uma noite escura e fria de Abril.
O vento esfusiava nas ramalheiras de Campolide.
A lua, a longas intermitências, parecia, wagon dos céus, correr velocíssima entre nuvens pardas, para ir engolfar-se noutras.
Então era o carregar-se a escuridão da terra, e mais para pavores o rangido das árvores sacudidas pelos bulcões do setentrião.
Soaram doze horas por igrejas daqueles vales. Era um como crebo soluçar da natureza por pulmões de bronze. Era o grão clamor da terra em angústias parturientes de alguma enorme calamidade.
Àquela hora, e por aquela noite capeadora de assassinos e bestas-feras, Calisto Elói, embrulhado num capote de três cabeções e mangas, que trouxera de Caçarelhos, passava rente com o muramento da quinta de Adelaide.
Depois, como saísse da vereda escura a um ressio que defrontava com a frontaria da casa, aqui parou, e, cruzando os braços, se esteve largo espaço quedo, e fito nas janelas.
Nem lua nem cintila de estrelas no céu! As confidentes daquele amador torvo como o cerrado da noite, negro como o coração que lhe arfa a lapela esquerda do colete, são as trevas.
Quis acender um charuto.
Nem os fósforos vingaram lampejar na escuridão.
E o vento assobiava no vigamento da casa, e nas orelhas de Calisto, o qual, levado do instinto da conservação, levantou a gola do capote à altura das bossas parietais, e disse, como Carlos VI:
— Tenho frio!
E passou-lhe então pelo espírito um painel da sua situação tirado pelo natural. Viu-se no espelho que a razão lhe ofereceu, e cobrou horror da sua figura.