Calisto dormiu mal.
As alvoradas de um dia feliz são mais temporãs que as da estrela de alva. O coração acorda primeiro que os pássaros. O amor diz o seu fiat lux primeiro que Deus. Estas três sentenças, a meu ver, são mais inteligíveis que o contentamento do morgado da Agra, ao levantar-se da cama em que dormitara algumas escassas horas alvoroçadas.
O desastre de Campolide quebrantaria um homem qualquer que viesse a cumprir neste mundo os vulgares destinos da máxima parte dos mortais. Indivíduos notáveis já saíram cépticos e bravos cínicos de aperturas menos dilacerantes. Os anais ensanguentados da humanidade estão cheios de facínoras, empuxados ao crime pela ingratidão injuriosa de mulheres muito amadas e perversíssimas. Superabundam casos de embaçadelas análogas à de Calisto; destes lances obscuros tem saído aparvalhada muita gente que era escorreita, e que se volve daninha à república. São uns homens que vos namoram as criadas, se vos não podem requestar a família; uns vampiros de sangue femeal, que trazem o demónio da vingança no corpo, demónio meridiano e nocturno, que bebe lágrimas de mulher, enquanto os possessos dele bebem conhaque e absinto. Um homem destes, encostado a frade de esquina, é o leão que espreita da sua caverna líbica a antílopa descuidosa. Oficiala de modista, que se espaneja nas verduras do jardim da Estrela, como alvéola nas praias borrifadas de espuma, se o anjo-da-guarda a desampara um quarto de hora, tem os seus dias contados.