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Daniel dirigiu um cumprimento distraído a Margarida, cujas feições não pôde distinguir pela pouca luz que as iluminava.
Demais eram estas feições, como já atrás dissemos, daquelas que exigem um exame demorado para se lhes sentir toda a suave beleza.
Podia dizer-se delas o mesmo que destas óperas, privadas de combinações brilhantes, que não deixam impressão em quem uma só vez as escuta; mas acabam por patentear segredos de harmonia aos ouvidos, que repetidamente as recebem, segredos que nunca mais se esquecem.
- Aonde está a Clara? - perguntou Pedro, entrando, seguido do irmão.
- Ao poço, julgo eu - respondeu Margarida com a voz, ainda trémula de comoção.
E, muito tempo depois de os ver passar, ali se conservou imóvel, com o olhar vago, a fronte inclinada e o seio inquieto. O que ia neste momento por o coração da pobre rapariga? Adivinha-o decerto a leitora, se já pensou na delicada sensibilidade deste carácter de mulher.
A indiferença, com que Daniel passara por ela, o modo por que a saudara, a frieza, com que lhe ouvira o nome... tudo lhe mostrou que a não reconhecia já.
Dolorosa descoberta para aquela alma, tanto mais amorável, quanto mais se encobria de manifestar os seus tesouros de afectos!
Foi com certa revolta de delicadeza feminina, com uma quase má vontade contra si própria que ela, sondando o íntimo do coração, reconheceu o sentimento que o inquietava assim.
Como que se interrogava com a severidade do mentor para com o discípulo mal encaminhado.
- Que loucura é esta, mulher? Pois ainda tens dessas criancices, doida? Que pensavas tu? que esperavas? Era acaso possível que ele se lembrasse de ti?... E para quê?... Não foi melhor que se esquecesse? Dize.
Em situações, como esta, opera-se em nós uma espécie de separação em duas entidades de sentir contrário.