Arvora-se uma em juiz, interroga da maneira que vimos, fala em nome da razão, julga, repreende, condena; a outra, quando, sob o severo exame da primeira, mais subjugada parece, conserva, na sua humilhação, intacto o espírito de independência; assim como, curvada a cabeça às admoestações da preceptora, a pequena discípula sente em si o instinto de rebelião, que mal pode reprimir.
Em Margarida também se dava este antagonismo. Falava-lhe a razão, como dissemos; mas baixo, como a medo, murmurava-lhe outra coisa não sei que voz, mais atendida por ela.
- Podias - segredava-lhe essa voz - podias e devias esperar que ele se lembrasse, sim. Acaso o esqueceste tu?
Diga-se a verdade. Até àquele momento, Margarida conservara uma ilusão; muito escondida dos outros e de si, mas nunca de todo extinta.
Avaliando, por os seus, os sentimentos dos mais não podia convencer- se de que, em Daniel, estivessem inteiramente apagados os vestígios daquela infância, gozada em comum por ambos. Pensava que ele a reconheceria logo, ao vê-la, que lhe não ouviria pronunciar o nome, sem que a memória o repercutisse; que o primeiro olhar seria fértil em recordações, que bastaria só para ressuscitar o passado inteiro.
Enganara-se: conheceu que se enganara agora, que o vira passar assim; e, apesar de toda a força da sua razão, Margarida, sentiu enevoarem-se-lhe os olhos de lágrimas, e a alma de melancolias.
Afinal de contas a boa da rapariga tinha um coração de mulher.
Perdoem-lhe esta fraqueza. Não há carácter humano, que as não tenha iguais; assim fora possível sujeitá-los à rigorosa análise de seus mais recônditos mistérios.